“e, finalmente, júlia aceitou o convite de Bruno para sair com ele.
um encontro.
ou, como dizem as produções americanas que entopem nossos cérebros desde que somos crianças: um date.
júlia era a menina mais bonita da faculdade.
quer dizer, bruno não podia afirmar isso pois não conhecia todas as meninas da faculdade.
mas com certeza era a mais bonita do andar em que ele estudava.
se bem que ele só estava lá pela manhã…bem, definitivamente era a mais bonita da turma dele de introdução aos mercados globais e Relações Internacionais.
Desde o primeiro dia de aula, Bruno se encantou por Júlia.
Ele estava sentado em sua carteira, pensando em nomes para sua banda cover de System of a down, quando ela entrou na sala.
Cabelo curto e escuro cortado estilo Chanel, olhos cor de mel, um fone de ouvido com o desenho de um personagem de South Park e uma camiseta com a foto de Jack Kerouac.
Bruno quase caiu para trás quando ela falou ‘bom dia’, e respondeu ‘JRAUGOCBAO!’, pois não conseguia formar pensamentos coerentes.
Ela o observou como se ele estivesse sofrendo um acidente vascular cerebral e sentou-se do outro lado da sala.
‘Muito bem, Bruno!’, pensou ele.
‘Praticamente um repelente ambulante de mulheres!’
Ele olhou frustrado para o caderno e sublinhou a melhor opção até então para o nome da banda: Sistema Feudal.
Corta para o dia do primeiro encontro dos dois.
Depois de Bruno prometer lavar a louça por um mês, seu pai Bruno emprestou o carro para que ele impressionasse Júlia.
Ele chegou no horário marcado, o que era um feito inacreditável pois a sua mãe sempre dizia que ele era tão atrasado que não conseguiu chegar na hora nem para o próprio parto – passou quase duas semanas da data prevista.
Quando o carro anunciou ‘Você chegou ao seu destino!’, Júlia já estava em frente ao prédio, esperando por ele.
Bruno desceu do carro na intenção de ser cavalheiro e abrir a porta.
Porém, quando chegou no lado do carona, não a encontrou.
Olhou para os lados sem entender nada.
Já tinha começado a pensar que estava sonhando com Júlia novamente quando ouviu o barulho do vidro da janela do carro se movendo.
Virou a cabeça para o lado e viu que Júlia já estava dentro do carro.
Ela olhou pra ele segurando o riso e falou ‘O que é que você está fazendo aí, garoto?’
E caiu na gargalhada.
Bruno deu de ombros e entrou no carro.
Ele havia preparado uma mix tape – que na verdade era uma playlist – com algumas músicas da sua banda.
Porém, como era um cover de um grupo de heavy metal, Júlia não conseguia ouvir uma palavra do que ele dizia por causa do barulho ensurdecedor.
Frustrado, ele mudou rapidamente de playlist.
Não deu muito certo.
As músicas eram horríveis e Júlia olhava de lado para Bruno, rindo discretamente, com a mão cobrindo a boca.
Ele olhou para a tela da central multimídia do carro e percebeu que havia colocado acidentalmente em uma playlist chamada RomanceStart, que continha apenas versões melosas de músicas do Restart.
Em um ato piedoso, Júlia alcançou o botão e desligou o rádio.
Ele gaguejou desconcertado, mas ela se mostrou uma especialista em quebrar o gelo e fez a conversa fluir bem.
Com o ânimo revigorado, Bruno chegou no restaurante mais badalado da cidade.
Era impossível conseguir uma reserva mas, por sorte, seu primo era barman lá e conseguiu mexer uns pauzinhos.
Certo que ia impressionar, Bruno andou confiante até a hostess e mandou na lata:
‘Reserva das 21h, por favor. Meu nome é Bruno Cordeiro.’
A moça olhou e disse que não havia nenhuma reserva com esse nome.
Bruno insistiu, sentindo gotículas de suor brotarem na sua testa devido ao nervosismo.
Novamente, a moça disse que não seu nome não estava na lista.
Bruno olhou ao seu redor.
O restaurante estava lotado.
O bar do restaurante estava lotado.
Até a fila do manobrista estava lotada.
Não havia esperança de ficar por lá sem reserva.
Júlia parecia observar curiosa.
De repente, a hostess fala:
‘Encontrei! Bruno Cordeiro, 21h…da próxima sexta.’
Seu estômago gelou.
Júlia gargalhou.
A hostess chamou o próximo.
Ele havia reservado na data errada.
Saíram do restaurante.
Júlia balançando de tanto rir e bruno arrastando os pés, entregue à derrota.
Ela o cutucou no braço e apontou para o outro lado da rua, onde viram uma cervejaria pequena, porém aconchegante.
Eles entraram, sentaram, conversaram, pediram, se beijaram e seguiram conversando.
E foi uma conversa tão boa que até hoje eles não pararam.”
Com o microfone na mão, Pedro olhou em volta e terminou seu brinde.
“Por isso, é um prazer estar aqui contando essa história que eu já ouvi muitas vezes e que nunca canso de repetir. É uma honra ser o padrinho de casamento do casal mais incrível que eu já conheci.
desejo, do fundo do meu coração, que aquele tenha sido o último primeiro encontro da vida de vocês.
que seja leve e eterno!”
e não é que foi?
o sabonete
era uma terça-feira.
uma da tarde.
na academia de ginástica.
terminei a supervalorizada levantação de pesos e fui tomar banho.
a academia disponibiliza, em todos os boxes, suportes com dois compartimentos para as pessoas colocarem seus sabonetes, shampoos e derivados.
ao entrar no box escolhido, observei que havia um sabonete usado descansando despreocupadamente no suporte.
não dei bola e coloquei meus acessórios higiênicos no espaço inferior.
comecei o banho, apliquei o shampoo e iniciei o processo de esfregação.
braços, tronco, pernas e outras partes foram devidamente ensaboadas.
o rosto eu sempre deixo pro final.
ao aproximar o aparato espumante da minha face que foi, um dia, beijada por maitê proença, noto algo diferente em sua cor.
não era a cor do meu sabonete.
em pânico, olho para o suporte e lá estava ele.
o meu sabonete.
com sua cor verde-musgo.
intocado.
desidratado.
em uma posição que dava a entender que ele estava observando a situação com um interesse nefasto.
estaria sorrindo debochadamente, se disso fosse capaz.
imagens começaram a pipocar pelo meu cérebro.
locais por onde aquele corpo estranho poderia ter passado.
por quais trincheiras ele teria rastejado?
que cavidades haveria visitado?
olhei para os lados em desespero sem saber o que fazer e só ouvi o silêncio sarcástico do meu sabonete.
aumentei a potência do chuveiro para o máximo e esfreguei meu corpo com a intensidade de uma motoniveladora.
por sorte, não havia uma lixa industrial por perto, ou então ela teria sido agressivamente utilizada.
quase como uma esfoliação aplicada pelo satanás.
com as mãos trêmulas, devolvi o sabonete invasor ao seu local de origem e apanhei o meu.
ao segurá-lo em minha mão, pensei ter sentido uma vibração, como se ele estivesse rindo.
passei tanto tempo esfregando meu corpo que, ao final, meu sabonete estava do tamanho de um selo.
saí do box cabisbaixo, carregado pela cena de horror que acabara de sofrer.
depois de me vestir, dei uma última olhada para o box e me arrepiei ao fitar o outrora estranho sabonete, que agora era terrivelmente íntimo.
me dirigi à saída e cumprimentei a moça da recepção.
ela me desejou uma boa tarde.
mentalmente, respondi:
– impossível.
luzes
pedro acordou de supetão, num susto engasgado.
no escuro, não conseguia enxergar nada, só o brilho desfocado do reflexo do seu rádio relógio na janela do quarto.
respirou fundo algumas vezes, tentando recuperar o fôlego que nem entendia como tinha ido embora.
olhou pelo vão da porta do quarto e viu a luz do banheiro piscando.
pensou que precisava trocar a lâmpada, apesar de jurar que já tinha feito isso no dia anterior.
não deu importância para a estranheza que a situação causava e esperou o coração voltar a bater no ritmo normal para retornar aos braços de morfeu.
aos poucos, o piscar da luz do banheiro começou a incomodar pedro.
ele virava de um lado para o outro na cama, mas o incômodo foi crescendo cada vez mais, ao ponto de pedro achar que conseguia ouvir os filamentos acendendo e apagando.
sempre no mesmo ritmo…sempre na mesma ordem.
apesar disso, pedro finalmente conseguiu voltar a dormir.
acordou sentindo-se cansado, como se tivesse passado a noite em claro.
sem muito foco, comeu qualquer coisa que encontrou na geladeira, vestiu a mesma roupa do dia anterior e saiu para o trabalho.
estava tão alheio à realidade que nem percebeu a luz da cozinha piscando.
por causa do cansaço, pedro passou o dia numa semi-letargia que seu trabalho como ascensorista em nada ajudava.
apertava os números no automático e só se permitiu sair do transe quando viu que as luzes do painel do elevador piscavam.
pior, piscavam no mesmo ritmo e intensidade que a luz do seu banheiro na noite anterior.
pedro sentiu-se fraco.
chegou ao térreo e pediu para seu colega o substituir porque precisava ir ao banheiro.
lavou o rosto e, enquanto o secava com as toalhas de papel extra-finas que a empresa disponibilizava, ficou se encarando no espelho.
quanto tempo pedro ficou ali, perdido no próprio olhar, ele não fazia ideia.
mas voltou a si quando a luz do banheiro começou a piscar.
pedro saiu ofegante e suado do banheiro. mal conseguiu murmurar a frase problema na barriga para seu chefe – o que deve ter ajudado no convencimento de que pedro realmente precisava ir pra casa.
esperou o ônibus olhando para os lados e torcendo as mãos, nervoso como nunca estivera na vida.
subiu no ônibus e sentou na última fileira.
tentava inspirar e contar até 10 antes de soltar o ar, como havia visto num vídeo sobre crise de pânico no tiktok.
aos poucos, sua respiração foi voltando ao normal, até que um vendedor ambulante entrou no ônibus e começou a vender suas mercadorias.
capa de celular, alicate de unha e lanternas.
pedro ficou encarando as lanternas sem entender o porquê, até que todas começaram a piscar.
tremendo, sacou o telefone e filmou as luzes.
o ritmo começou a acelerar e seu telefone ficou tão quente que ele quase não conseguia o segurar.
desesperado, pedro levantou, correu até a porta do ônibus e desembestou pela calçada, tropeçando numa lata de lixo.
andava apressadamente pelas ruas, olhando para os lados como se esperasse ser atacado a qualquer momento.
a mera visão dos postes e letreiros iluminados das lojas já era suficiente para deixar suas mãos tremendo.
apesar disso, chegou em casa sem maiores sustos.
sentou à sua poltrona favorita e tomou um longo gole do seu whisky barato.
enquanto sentia a garganta queimar, fechou os olhos, tentando recuperar o controle das suas emoções.
o ritmo das luzes piscando não saia da sua cabeça.
ele havia decorado toda a combinação, como se ela estivesse dentro dele o tempo todo.
gravou um áudio contando tudo e o enviou, junto com o vídeo feito no ônibus, para uma amiga que adorava teorias da conspiração.
foi até o banheiro.
ao apertar o interruptor da luz, nada aconteceu.
então, ele lembrou da noite anterior e trocou a lâmpada.
receoso, apertou o interruptor novamente.
a lâmpada acendeu e ficou estática.
pedro sorriu aliviado.
tomou outro gole de whisky.
e mais um.
e mais um.
até ficar com sono e deitar largado na cama.
pedro não viu, mas uma luz se acendeu na sala da sua casa horas depois.
era a tela do seu celular.
sua amiga respondeu e, em sua mensagem, ela dizia:
“isso no vídeo é código morse. significa SUA HORA CHEGOU.”
“comprei os ingressos”
alarme tocando.
bocejo.
sacolejos gentis.
novos bocejos.
fogão sendo ligado.
geladeira abrindo.
geladeira fechando.
mastigação.
conversa.
chuveiro abrindo.
chuveiro fechando.
dentes sendo escovados.
porta da casa abrindo.
porta da casa fechando.
porta do carro abrindo.
porta do carro fechando.
ronco do motor.
rádio ligado no AM.
flanelinha orientando.
promessa de pagar na volta.
pede um refrigerante.
o tempo passou e agora é uma cerveja.
conversa.
risadas.
pedras de dominó batendo.
risadas.
provocações.
risadas.
milhares de pés se movendo.
pede uma cerveja ao gasoseiro.
apito.
chuteiras na grama.
bola na grama.
apito.
xingamento.
orientações berradas.
encontrão.
xingamento.
bola indo de encontro ao travessão.
lamentação.
apito.
conversas pipocando em todos os lados.
saco de pipoca abrindo.
“vevêtes” sendo devorados.
latas abrindo.
apito.
aplausos.
empurrões.
lamentações.
xingamentos.
orientações berradas.
chute.
silêncio total e absoluto.
bola encontrando a rede.
explosão.
gritos.
berros.
choros.
gargalhadas.
apito.
palmas.
abraços.
conversa.
risadas.
latas de cerveja sendo abertas.
pedras de dominó batendo.
risadas.
provocações.
risadas.
senha do cartão sendo digitada.
porta do carro abrindo.
porta do carro fechando.
conversa.
rádio ligado no AM.
porta do carro abrindo.
porta do carro fechando.
bocejo.
abraço.
beijo na bochecha.
interruptor sendo apertado.
boca formando um sorriso.
——————————–
idas a estádios de futebol com meu pai são algumas das memórias mais marcantes que estão impressas no meu cérebro.
tão marcantes que eu nem preciso de imagem, apenas os sons bastam.
e cada um deles tem um lugar especial na minha história.
o adeus
estava tudo escuro.
mas não como fica quando apagamos as luzes da sala no final da noite.
era uma escuridão completa, que afetava não só a capacidade de enxergar, mas também brincava com a sanidade de quem estava imerso nela.
tudo que ana e bruno conseguiam sentir eram suas respirações curtas e aceleradas, ambos tentando não ceder ao pânico que se aproximava a cada segundo.
eles se tocavam, sentiam a pele um do outro, numa tentativa de trazer uma falsa sensação de tranquilidade para um momento desesperador.
tentavam conversar, mais para desviar a atenção dos próprios pensamentos do que qualquer outra coisa.
- ana…eu não sei o que fazer. não sei se posso aguentar mais.
- calma, meu amor. vai dar tudo certo, eu prometo.
mas ana sabia que não ia dar tudo certo. ela sentia em cada fibra dos seus músculos retesados de tensão. sentia em seus pelos arrepiados da nuca. sentia em sua alma.
eles voltaram a gritar, desamparados, numa fútil tentativa de receber ajuda.
- socorro! tem alguém ouvindo? estamos presos!
- por favor, ajudem a gente! socorro!
a única coisa que eles recebiam em resposta era o silêncio, tão devastador quanto a escuridão.
num sobressalto, ana levanta e começa a tatear as paredes. bruno pergunta o que ela está fazendo, mas ana está muito focada para responder.
“tem que ter um jeito de sair daqui, preciso encontrar a porta!”, ela pensa.
“por favor…tem que ter…um jeito.”
apesar de seus esforços, tudo que ana sente são as pedras úmidas da parede do porão onde eles estão presos.
seu pé bate em alguma coisa.
bruno se assusta com o barulho que chega aos seus ouvidos como bombas caindo na trincheira que ele está escondido.
- o que foi isso?!
- não sei, mas é bem pesado.
ana se ajoelha e começa a tatear ao redor do objeto. ela sente um líquido pegajoso dentro dele e algo peludo. gordo. assustador.
ela grita e se afasta rapidamente. bruno se desespera.
- ahhh!
- o que foi?! ana?! ANA?!
- acho…acho que tem alguma coisa morta ali…e sangue. parece sangue!
ana volta para perto de bruno e se abriga. ele respira e a beija na cabeça.
no momento que os lábios dele encostam nos cabelos de ana, ambos aceitam seu destino.
- ai, bruno…acho que…acho que não vamos conseguir sair daqui.
ele sente as lágrimas dela pingando em seu braço. normalmente, ele tentaria conter as suas, mas ele não via mais motivo para isso e se entregou ao momento, desatando o nó que estava preso em sua garganta há horas.
- eu te amo, ana. eu sempre vou te amar.
- bruno…eu…te…amo…
ana soluçava entre as palavras, não conseguindo conter o desespero.
eles sabiam que eram suas últimas palavras um para o outro.
ana abraçou bruno com força, como se a intensidade do seu abraço pudesse congelar o tempo.
bruno sentiu sua costela se comprimindo, mas não se importou. era a última coisa que sentiria e estava feliz que fosse isso.
- adeus, meu amor. a gente se vê no paraíso.
- obrigado por ter sido tão incrível. eu te amo pra sempre.
eles se abraçaram deitados, ignorando o chão asqueroso do porão.
as lágrimas corriam decididas por seus rostos, fazendo pequenos barulhos quando tocavam o solo.
de repente, escutam uma gritaria como se uma multidão estivesse comemorando o gol da sua seleção de futebol.
menos de um segundo depois, as luzes do porão acendem e os sons dos eletrodomésticos ligando chegam como trombetas dos anjos celestiais anunciando um milagre.
ana e bruno se levantam e olham ao redor.
se abraçam, envergonhados, sem acreditar que fizeram esse drama todo por causa de uma falta de energia.
ana vai até o objeto que sentira antes e se lembra que tinha deixado um casaco de pele de molho no porão, ao lado da máquina de lavar.
eles se olham. sorriem constrangidos.
- quer sair pra comer alguma coisa?
- vamos no shopping, a gente precisa comprar umas lanternas e pilhas.
- é…
a missão
joão estava desesperado.
sentia a boca seca e seus olhos piscavam descontroladamente devido à adrenalina.
seu maxilar estava rígido, travado de tensão. esforçava-se para evitar que as mãos tremessem.
aos poucos a testa ficava úmida, aumentando a sensação de desconforto.
ofegante, ele não sabia o que fazer. já havia tentado de tudo mas nada surtiu efeito.
apertava as mãos, ansioso, enquanto vasculhava a memória tentando encontrar alguma solução esquecida no labirinto de conhecimento inútil que era seu cérebro, mas nada surgiu. só a receita do molho tártaro que aprendeu com sua avó quando tinha 14 anos.
joão olhou para os lados buscando alguma inspiração sobrenatural, alguma luz, alguma coisa, qualquer coisa.
nada.
sentindo o coração batendo forte e acelerado, ele decidiu arriscar e agiu sem pensar.
tudo ficou em slow motion.
joão puxou o freio de mão, tirou o cinto de segurança e abriu a porta do carro, tudo em milésimos de segundo.
mal pisou no asfalto e já iniciou uma corrida desesperada. fazia anos que não se exercitava, mas o senso de urgência foi maior que sua falta de preparo físico. o sapato social apertando seu pé estava longe de ser o ideal, mas nada iria pará-lo agora.
desviou dos vendedores de pipoca e dos lavadores de vidro, arrancou um retrovisor em sua loucura temporária mas nem percebeu. nada era mais importante do que cumprir sua missão.
pulou um buraco e driblou uma moto, mas de repente ergueu os olhos e percebeu que não ia conseguir.
o sinal ficou verde e ela se foi. joão, então, ajoelhou-se no asfalto escaldante do meio-dia e levou as mãos à cabeça, se entregando ao mais profundo sentimento de impotência. ao longe, ela seguia seu caminho sem fazer ideia do que tinha acabado de acontecer.
joão gritou mesmo sabendo que de nada ia adiantar.
era o fim.
ele teria que passar o resto da vida sabendo que não conseguiu avisar àquela misteriosa mulher que a porta do passageiro do carro dela estava aberta.
conheci outra
– preciso desabafar: conheci outra pessoa.
foi assim que pedro iniciou a conversa mais difícil de sua vida.
já fazia um tempo que ele sabia que esse momento chegaria. afinal de contas, as coisas já não era as mesmas.
o amor tem disso, pensava ele. você acha que nunca vai sentir uma coisa tão intensa e verdadeira por outra pessoa, mas quando você menos espera, na fila para pagar o estacionamento, conhece alguém e quando vê, já foi.
pedro tinha vontade dizer a esposa que ela adoraria vera. esse era o nome dela. vera.
apesar de ter certeza que ela entenderia essa necessidade de pedro de seguir a vida, ele não queria criar uma situação desconfortável. daria tempo ao tempo.
vera era uma mulher incrível. atenciosa e divertida, fazia pedro sentir o sangue batendo com vontade novamente. há quanto tempo pedro não tinha vontade de terminar um sorvete, de ver uma comédia romântica no cinema ou disposição para voltar a caminhar na praia?
parecia que sua vida tinha entrado em stand by.
mas quando colocou os olhos sobre aquela ruiva de 1,80m ao seu lado na fila, sentiu o mundo se movendo novamente.
já fazia meses que pedro e vera saiam escondidos. apesar de não concordar, vera respeitava a decisão do seu amado. afinal de contas, ele era casado há 15 anos. por isso, vera foi paciente e nunca deixou de estar ao seu lado.
quando ele contou que ia esclarecer a situação com a esposa, vera deu todo o apoio e até perguntou se ele queria que ela fosse junto. pedro agradeceu mas disse que isso era uma coisa entre ele e a esposa.
o dia estava lindo.
apesar do nó na garganta, pedro estava firme em sua resolução.
caminhava decidido, de cabeça erguida.
depois da conversa, com lágrimas nos olhos, pedro se ajoelhou, beijou a lápide da sua esposa, e falou, entre soluços:
– eu te amo, ana. você sempre vai ser a mulher da minha vida.
ódio
Ele odiava ela.
Não existe uma maneira mais suave, mais educada de dizer isso.
Olhar para ela era um martírio. Era só cruzar com ela que sentia o sangue subindo pelo pescoço, se alojando em cada centímetro do seu rosto, como água fervendo.
Eles trabalhavam na mesma empresa e, apesar dos inúmeros requerimentos, e-mails, ofícios, ligações e tentativas de suborno, ele não conseguia mudar de lugar. Se demitir estava fora de cogitação, pois ele adorava o trabalho.
Ouvir a voz dela era como se agulhas de acupuntura estivessem sendo alojadas em seu cérebro por um babuíno embriagado. Não suportava seu tom de voz e a maneira como ela contava a todos como seu fim de semana havia sido divertido.
Odiava os apelidos que ela colocava em seu marido, as coisas que faziam juntos, as fotos em todas as redes sociais declamando um amor infinito.
Quando esse sentimento arrebatador começou, ele não sabia de onde tinha vindo. Por muitos meses, se torturou, dividido. Afinal de contas, por que odiar uma pessoa desse jeito? Não havia motivo!
Ele seguia nessa gangorra: odiava ela e se odiava por odiar sem motivo.
Até que um dia, depois de ir ao banheiro molhar o rosto para se acalmar depois de ouvir como a pizza do domingo tinha sido a melhor coisa do mundo, ele se deu conta.
Sabe aquelas cenas de filme quando o mocinho levanta o rosto e se olha no espelho com o rosto ainda molhado e com cara de espanto? Foi exatamente isso que aconteceu.
Mais uma vez ele sentiu o sangue correndo até seu rosto, mas agora foi de vergonha.
Ele a odiava porque ela era ela mesma. Simples assim.
Não se limitava por padrões impostos pela sociedade, não se preocupava com as opiniões alheias mais do que o necessário, era genuinamente feliz, não forçava a amizade, não tentava fazer parte de nenhum grupo ao qual não pertencia.
Ele a odiava porque ela era o contrário dele, que sempre tentava seguir a última moda para homens do seu perfil, puxava o saco do chefe para fazer parte do grupo íntimo, forçava um sorriso que tentava ser cordial mas que na verdade era insípido, incolor e inodoro.
Voltou para sua mesa transtornado de tal maneira que até ela percebeu. Olhou curiosa e deu um sorriso que ele nunca viu num espelho antes. Um sorriso cheio de calor, de vida, de gosto.
Um sorriso sincero.
Amar é simples
O amor é mais simples do que parece.
Essa foi a primeira frase que o professor de Dramaturgia 1 escreveu no quadro negro, que na verdade era branco.
Elisa se remexeu na cadeira que machucava suas costas e levantou a mão:
– Como assim é mais simples do que parece? O amor é super-complicado! Tem brigas, ciúmes, traição. Não tem nada de simples nisso.
O professor afastou uma mecha rebelde da testa, sorriu compreensivamente e falou a frase que mudaria a vida de Elisa para sempre:
Amar é uma troca. De amor, paixão e liberdade. Se você não ama quem é livre, como vai poder ser livre para amar?
Elisa acordou com o som do isqueiro. Olhou para o lado e viu Amanda com seu cigarro mentolado pendurado displicentemente nos lábios finos e pálidos.
Sorriu e a beijou no pescoço.
Passou os dedos pela tatuagem que ocupava todo o antebraço e disse uma frase que Amanda nunca mais esqueceria:
Eu te amo, Manda. Mais do que eu gostaria. Menos do que você merece.
Amanda abriu os olhos. Estava no trem, a caminho do trabalho. Ao seu lado, um desconhecido chorava calado, o pior de todos os choros.
Amanda pegou seu post-it, escreveu nele e prendeu na parede, em frente ao homem. O que tinha escrito ali, ele nunca esqueceu:
Tudo vai ficar bem, porque quem chora sem vergonha, vive sem tristeza.
André abriu os olhos. Estava no banho há tanto tempo que seus dedos estavam enrugados. Lembrou da briga colossal que tivera com sua esposa. Tremeu. Lembrou do post-it da senhora no metrô. Sorriu.
Quando saiu do banheiro, nem sinal da sua esposa. A última vez que a viu, ela estava chorando. Apesar disso, ele estava sorrindo quando deixou um bilhete que mudou para sempre a vida dela:
Amar é uma troca. De amor, paixão e liberdade. Se você não ama quem é livre, como vai poder ser livre para amar? Eu te amo, Clara. Mais do que eu gostaria. Menos do que você merece. Tudo vai ficar bem, porque quem chora sem vergonha, vive sem tristeza.
a vida de rano
raoni periguná ratxatá.
esse era o nome de nascença de rano.
ele tinha consciência que rano era um apelido bem ruim, mas ainda assim era melhor do que raoni periguná ratxatá.
nascido na aldeia mayoruna marubo matis (cujo significado ninguém sabia), rano sempre se achou um peixe fora d’água.
nunca gostou muito de atividades ao ar livre e muito menos de andar descalço pelo mato.
sem falar nessa conversa de ter que ficar pulando feito um grilo alucinado ao redor da fogueira para atrair bons espíritos.
se os espíritos eram bons mesmo, por que ia deixar que acendessem uma fogueira depois da outra?
e as árvores? como ficavam?
e sua pele, que ficava ressecada como um mamão papaia vencido no meio daquele calor todo?
era demais pra ele.
rano sempre sonhou em fugir de mayoruna marubo matis.
mas para onde iria? o que faria?
o único talento que possuía era juntar vários pedaços de pele que serviam para adornar os corpos dos seus colegas índios, mas que não faziam muito sucesso já que a última (e primeira) moda daquele lugar atrasado era andar pelado mesmo.
rano seguia desenhando suas ideias, que chamava de indielook, num caderno que achara rio abaixo e mostrava para seus dois melhores amigos, aruruara e manbonganga, que sempre aceitavam o papel de cobaias das suas maluquices.
um dia, rano acordou com uma ideia na cabeça.
durante semanas trabalhou sem parar, deixando a tribo inteira curiosa sobre o que ele estaria aprontando dessa vez.
então, num sábado à noite, rano convidou a todos da aldeia para comparecer ao
show off da first indielook by ran.0.
mesmo só compreendendo a palavra “sábado”, a tribo inteira compareceu.
afinal de contas, o que mais eles poderiam fazer num sábado à noite no meio da selva amazônica?
ou em qualquer outra noite?
depois que seu staff servisse suco de sequoia selvagem e canapés de favos de mel embebidos em extrato de papoula, ran.0 estava confiante de que todos iriam sauda-lo como um deus grego depois do show off protagonizado por aruruara e manbonganga.
corte seco.
era dia claro e ran.0 estava em pé sobre quatro troncos amarrados frouxamente com cipós no meio do rio ambuburuambu.
andava de um lado para outro se lamentando, tentando imaginar o que poderia ter dado errado no seu show off.
a única coisa certa era que ele estava banido da aldeia.
malditos.
mas eles iam ver. todos eles.
ran.0 então se ajoelhou na balsa improvisada, ergueu as mãos pro céu e gritou:
TE JURO, TUPÃ! TE PROMETO SOB ESSE SOL, SOBRE ESSE RIO, QUE EU VOU SER…
o que ran.0 seria ninguém jamais vai saber.
em seu fervor furioso, não percebeu a cachoeira que se aproximava.
enquanto sua balsa entrava na queda d’água, ran.0 não viu sua vida passando diante dos olhos ou nada disso.
pela primeira vez ran.0 percebeu o que tinha dado de errado no seu show off.
como ele poderia ter esquecido que a sequoia era sagrada para seu povo?
como?
despertar
ele acordou.
isso por si só não era nem um pouco estranho. o que deixou ele irrequieto foi ter acordado de uma hora pra outra, com o coração pulando e uma sensação de pânico.
de repente, como um tapa na cara, a lembrança chegou.
os gritos, o choro, a porta batendo.
sentou-se na cama e tentou controlar o coração que parecia tentar escapar do corpo pela boca. respirou algumas vezes como sua professora de Yoga ensinara, mas não adiantou.
resignado, foi até o banheiro e lavou o rosto. ao se olhar no espelho, levou um susto. suas olheiras transformavam seu rosto já pálido em uma máscara sem vida.
ele encarou o próprio reflexo por um momento, lembrando do choro convulsivo na cama até pegar no sono, exausto.
sentiu as lágrimas surgindo novamente, mas se controlou.
– a vida é assim mesmo. só ama de verdade quem não tem medo de sofrer.
repetiu a frase mais duas vezes. como dissera sua professora de Yoga, três é um número cabalístico e que canaliza boas vibrações.
já fazia 15 minutos que ele estava parado na entrada do seu apartamento. podia imaginar seu chefe olhando para sua mesa vazia, mas não se importava. ela estava lá.
aquela que falou que não queria o ver nem pintado de ouro.
aquela que jurou nunca mais trocar uma palavra com ele.
aquela que falou mal da sua samambaia de estimação.
ele podia sentir as lágrimas voltando mais uma vez. a mão tremia levemente.
ela acordou de repente, suada e com lágrimas nos olhos. automaticamente, tentou enroscar seus pés nos dele, mas não havia ninguém lá.
então ela lembrou.
dos gritos, do choro, de bater a porta. com força. duas vezes.
ela sentou na cama.
“como foi mesmo que ele disse que a professora de Yoga ensinou?”
não conseguiu lembrar e foi até o banheiro.
assustou-se com as olheiras e procurou seu corretivo. não achou. procurou mais uma vez, dessa vez já com lágrimas nos olhos com medo de que estivesse no último lugar que ela gostaria de estar.
é claro que estava.
gritou.
de raiva.
de tristeza.
de dor.
foi até a geladeira e viu o resto da comida chinesa do fim de semana passado, que foi regado a Woody Allen e Miles Davis.
ela sorriu.
sabia que ele só fingia essa sofisticação para alegrar ela.
se dependesse dele, estariam vendo Superbad ou Nacho Libre. no som? nada. ele não gostava de música alta pela casa. tinha medo de incomodar os vizinhos.
sentiu as lágrimas vindo, mas nada fez para impedir. enquanto ela molhava a camiseta surrada dos Ramones dele, lembrava de como ele mexia no seu lóbulo enquanto falava.
lembrou das risadas, das cócegas, das juras de amor em post-its amarelos.
de repente não lembrava mais do que motivou uma noite de domingo tão horrível.
era alguma coisa sobre a bagunça.
que coisa idiota!
ela ficou com raiva de si mesma por ter se deixado levar pela raiva.
colocou uma calça e saiu.
subiu dois lances de escada e bateu na porta. prendeu a respiração e viu aquele que, há 6 horas, não queria nem ver pintado de ouro.
ela viu as lágrimas nos olhos dele e sentiu uma facada no coração. odiava vê-lo chorando.
a mão dele tremeu.
ele acordou de repente, num sobressalto.
ao mexer os pés, sorriu e voltou a dormir.
ela acordou de repente, num sobressalto.
ao mexer os pés, sorriu e voltou a dormir.
o tarado das recepcionistas
roberval era um cara bacana.
sempre bem-humorado, não tinha tempo ruim pra ele.
era a salvação da mesa quando acabava o assunto e o imperador das conversas de elevador.
o que ninguém desconfiava era que roberval tinha um segredo cabeludo. mas tão cabeludo que ele podia muito bem ter saído dos anos 80.
roberval era um tarado. o tarado das recepcionistas.
isso começou quando ele ainda era pequeno.
nas viagens, enquanto a família se divertia na piscina do hotel, roberval não saia do front desk.
seus cartões postais tinham sempre os mesmos destinatários: a recepcionista do dentista, do pediatra e até zuleide, a recepcionista do seu pai que há muito já passara da flor da idade.
enquanto isso, sua tia flora, que sempre dava uma nota de cinquenta em seu aniversário, coitada, não recebia nem uma mensagem de texto.
quando ele era criança até que era bonitinho.
fofinho.
mas aos poucos as pessoas começaram a notar que o problema era sério. principalmente quando ele, com 14 anos, tentou fugir com a recepcionista da locadora de video-games onde ele passava as tardes.
quase conseguiu.
roberval frequentou diversos psicólogos ao longo dos anos.
ao invés de escolher pelo preço, seus pais escolhiam pelo gênero da pessoa encarregada da recepção.
se fosse XX, eles saiam correndo.
o tempo passou e roberval não apresentou nenhum sinal de mudança de comportamento.
quando ele fez 18 anos, seus pais jogaram a toalha e o seu tio fifão levou o garoto, que ainda não tinha desfrutado da companhia íntima de uma mulher, a um estabelecimento com poucos pudores morais.
chegando lá, roberval descobriu que fifão tinha molhado várias mãos – no sentido financeiro – e conseguiu que a moça mais famosa do local prestasse uma atenção especial ao seu sobrinho.
pobre fifão.
roberval terminou a noite na kitnet alugada da recepcionista do estabelecimento, conhecida como cida amansa gato.
um belo dia, andando em direção ao metrô, roberval viu a mulher mais bonita do mundo.
ela estava em pé, encostada em um muro coberto de musgo, fumando um cigarro.
roberval, que não fumava, pediu, só pra puxar assunto, um cigarro a ela, que riu com vontade quando ele tentou acender o filtro ao invés da ponta.
eles passaram 49 dias conversando. pelo menos foi isso que pareceu para roberval.
o problema é que eles não tinham nada em comum.
ela gostava de sex pistols, nirvana, interpol e elvis. já roberval, não ia dormir sem a voz de frank sinatra embalando seu sono.
roberval gostava de ver futebol nos domingos à tarde, enquanto ela ia cuspir na cara da sociedade na marcha das vadias.
mesmo assim roberval seguia loucamente apaixonado. infeliz, mas apaixonado.
as brigas eram constantes, parecia até que eles não falavam a mesma língua.
os amigos já não aguentavam mais as reclamações de roberval e diziam para ele largar essa mulher e voltar a ser feliz, mas roberval não conseguia passar um minuto longe dela.
tudo continuava normal, indo de mal a pior, quando roberval achou um envelope no meio das coisas da mulher.
era um diploma:
recepcionista do ano 1999.
o emprego dos sonhos
meu nome é joca.
não, não é joão carlos. é só joca mesmo. mas como o povo tem mania de colocar apelido em todo mundo, me chamam de jó.
tive uma infância normal, uma adolescência normal, uma juventude normal e estou na idade adulta normal.
eu sou responsável pela segurança do edifício garagem de um shopping na cidade onde vivo e gosto muito do meu emprego.
não pelo salário, que mal dá pra pagar meus discos piratas de frank zappa e as garrafas de vodka polonesa falsificada. também não é pelo ambiente, já que os escapamentos dos carros não são os companheiros de trabalho ideais, segundo a organização mundial da saúde. eu adoro meu emprego porque consigo, mesmo que por poucos segundos, sentir as emoções de milhares de pessoas todos os dias.
toda vez que um carro se aproxima da caixinha que recolhe os tickets de estacionamento e o vidro desce, eu sempre fecho os olhos segurando a respiração, me concentrando pra receber um jorro momentâneo de intimidade, degustando as alegrias, decepções e esperanças.
eu já compartilhei a dor de uma mulher traída acompanhando o balanço das baladas de joe cocker, já ri junto com um jovem ao som do besteirol genial dos mamonas assassinas e já presenciei a excitação de um casal com o fundo musical sensual do portishead.
isso se tornou um vício tão grande que eu nunca tirei férias. não consigo me imaginar sem essas doses diárias de emoções, mesmo que não sejam minhas.
todas as vezes que eu coloco a cabeça no travesseiro, lembro das músicas do dia que passou e pego no sono com um sorriso trêmulo no rosto, antecipando o dia que está para chegar.
um dia eu ouvi minha música preferida e não pude deixar de olhar nos olhos da mulher que estava tendo problemas para passar o cartão. ela não tinha pago o estacionamento porque achou que ainda não tinham passado os 20m e estava ficando nervosa com as buzinadas dos homens-gado de terno voltando da alforria das 2h de almoço.
pedi pra ela colocar o carro de lado e acho que meu rosto me traiu quando ela desligou o som. ela parou, olhou pra mim durante o que me pareceram horas e ligou novamente o rádio. aos poucos ela se aproximou de mim, pegou minha mão e começamos a dançar, tão devagar que nossos pés mal se moviam.
até hoje lembro do cheiro do seu cabelo e do jeito que ela encostou sua cabeça no meu ombro enquanto billie holiday dilacerava minha alma cantando body and soul.
ele
eu sempre me perguntei o que era o amor.
tudo bem, não sempre, mas pelo menos desde que meu cérebro começou a funcionar de uma forma aceitável.
segundo os filmes, os livros e as músicas, o amor é um sentimento inigualável, incomparável, inenarrável, impossível de ser compreendido. mas se é assim, como a gente vai saber que está amando?
A-HÁ!
pois é. eu também não sei.
mas eu sei que eu sempre quis amar loucamente. acho que mais pra finalmente entender do que todos os filmes, livros e músicas falam do que para amar propriamente dito.
e sabem o que eu descobri?
eu já amava.
sempre amei. todo mundo sempre amou.
porque o amor não é um sentimento único, que arrebata pessoas tirando o ar dos pulmões fazendo com que elas sonhem acordadas.
o amor é simples.
eu, por exemplo, amo boliche.
amo o barril de cerveja da heineken.
amo café, até quando é mal-feito.
mas também amo dedé, nathalia, HLA, Léo, guila e guto.
amo até meus pais!
o importante não é a intensidade ou a quantidade de amor que se tem. é como você usa esse amor.
mesmo se você ama uma coisa estranha, o que importa é que ela faça você sorrir.
pode ser um bicho de pelúcia, uma pessoa ou simplesmente um chumaço de algodão.
eu vi um passarinho, mas ele era azul
enquanto você comenta com o colega do lado o quanto essa frase é clichê, deixa eu explicar melhor.
antes do twitter, você andava pelo ambiente desorganizado e muitas vezes hostil da internet para encontrar o que queria, mas não sem antes encontrar milhares de coisas que não queria.
até aí tudo bem, já que nessa época você provavelmente era um estudante cuja maior preocupação era passar de ano e ver a vizinha trocando de roupa.
mas quando você vira adulto, as coisas complicam e você não pode mais perder tempo.
tudo é pra ontem.tudo é sem prazo.
tudo é urgente-se-não-seu-astolfo-vai-vir-aqui-e-vai-sobrar-pra-todo-mundo.
enquanto todas as empresas erguiam muros e palavras como sexta-feira e sexagenário eram consideras riscos atômicos para o bem-estar da rede ultra-veloz da companhia, chegou o twitter.
tudo bem, se você segue o o primo da sua namorada que insiste em falar do novo disco do restart, o twitter é chato.
muito chato. mais chato que o próprio restart.
mas se você segue aquele cara que fala um monte de coisas espertas que você pode usar para impressionar seu chefe, aí a coisa muda de figura, né?
ah, sim, como foi que ele mudou minha vida. certo.
você sabe como é ter todo o conhecimento do mundo a um clique de distância?
é, nem eu.
nem o cara que criou essa frase, que hoje deve estar socado no departamento de inovações de uma dunder mifflin da vida.
o que eu sei é que no twitter eu posso escolher que tipo de informações vão chegar na minha tela de LCD. eu nem preciso pedir, elas simplesmente aparecem.
calma, calma. não é feitiçaria. é tecnologia.
com o twitter, você pode seguir só quem interessa, quem oferece um conteúdo relevante e verdadeiro.
as vezes engraçado.
mas cuidado com o stand-up comedy virtual, porque é pior que sacolé de cicuta.
com esse passarinho que já virou celebridade, ao invés de passar muito tempo tentando andar na mumbai cibernética, você pode encontrar tudo que interessa rapidinho.
aí sobra mais tempo para o que realmente importa na vida: ver sua vizinha trocando de roupa.
amizade colorida
eles eram melhores amigos. mas daqueles do peito mesmo. e olhe que ele nem olhava pro dela.
desde o primeiro dia de aula da turma da auto-escola ele não conseguia parar de olhar pra ela.
talvez fosse o sorriso largo, o jeito de colocar os cabelos atrás da orelha ou os olhos inquietos que piscavam mais rápido que o ponteiro de segundos do relógio de parede da sala. ou quem sabe eram os cabelos verdes.
ele tentou chamar a atenção dela de todo jeito. até que em um movimento desesperado, fez um “psiiu!” e, quando ela olhou, jogou um aviãozinho de papel onde perguntava seu nome.
pena que o aviãozinho tinha outros planos e decidiu pousar entre os olhos dela.
o professor virou pra ver o que estava acontecendo quando ela jogou o kit de primeiros-socorros no rosto dele e saiu, batendo a porta. pena que era a porta do almoxarifado.
ainda com gaze no cabelo, ele foi atrás dela. pediu desculpas e ofereceu um chocolate que estava no bolso da sua jaqueta desde a festa de cosme e damião. do ano anterior.
ela sorriu, colocou o cabelo atrás da orelha, fez um muxoxo e aceitou. conversaram sem parar até a aula terminar e ficaram de rachar um táxi no outro dia, já que moravam no mesmo bairro.
pena que no outro dia ela não pôde ir porque estava no hospital com uma infecção estomacal.
quando ela voltou, eles tornaram-se amigos inseparáveis. faziam tudo junto. menos isso que você está pensando.
ela fez questão de que ele estivesse ao seu lado quando foi dirigir pela primeira vez. e ele nem ligou quando ela morreu 13 vezes antes de conseguir sair do pátio da auto-escola.
foram anos de amizade. ele finalmente conseguia entender aquela música de roberto carlos.
até que um dia ela ligou dizendo que precisavam conversar.
ele estava sentado na sorveteria de sempre, tomando seu 5º expresso quando ela chegou com uma mala. disse que ia viajar e nunca voltaria. ela tentou se desculpar, mas ele não ouviu nada. não conseguia prestar atenção no que ela falava.
apesar de o café já ter acabado, ele continuava levando a xícara à boca. talvez se eu não parar, pensou ele, ela nunca levante.
mas ela levantou. misturaram as lágrimas. ele pediu mais um expresso. ela se foi.
três meses depois ele soube que ela tinha ido tratar de um câncer. foi embora porque não queria o ver sofrendo.
quando ele chegou ao hospital, os cabelos verdes já não estavam mais lá. mas o sorriso largo era o mesmo e ocupou todo o quarto quando ela o viu.
novamente misturaram as lágrimas. se olharam durante 200 anos. ele sentou e segurou a mão dela.
junto dele, havia uma sacola grande. quando ela perguntou o que era, ele não disse nada. abriu, tirou uma peruca verde e colocou em sua cabeça.
nada mal pra uma jovem de 72 anos, ele disse.
ela sorriu, olhou para ele dos pés à cabeça e disse: você também não está nada mal para um velho de 38.
o cheiro da sexta-feira 13
eu tinha 14 anos.
bem naquela idade onde qualquer menina que tenha tudo no lugar é atraente.
os pais de mel – que na verdade se chamava vanessa, mas a gente a chamava de mel porque ela parecia com mel gibson. o que era uma maldade. mel gibson era bem mais atraente – estavam viajando e deixaram a irmã dela tomando conta da casa.
como toda adolescente que se preze, a irmã de mel, que tinha 17 anos, trancou-se no quarto com beto da jaqueta (que ignorava os 36 graus – na água – que sempre fazia no recife e ia para todos os lugares com uma jaqueta de couro) e passou o fim de semana lá.
como era uma sexta-feira 13, decidimos alugar 13 filmes de terror para comemorar a data. colocamos a fita no videocassete e começamos a maratona.
eu estava sentado entre mel e roberta gambá (que era uma gatinha, mas não tinha leite de rosas que desse jeito). consequentemente, joguei todo o meu charme pra cima de mel. incluindo aquela velha espreguiçada para colocar meu braço por cima do ombro dela.
na metade do segundo filme, nós já estávamos de mãos dadas. no final, ela já estava com a cabeça no meu ombro.
apesar do torcicolo causado pela falta de movimento para não balançar a cabeça de mel, eu já estava bolando um plano para conseguir dar um beijo nela.
depois de pensar bastante, tive uma ideia genial. virei pra mel e falei:
– se tiver com medo, pode me beijar.
para tudo, para tudo. como assim “me beijar?!”
olhei para os lados procurando ajuda e só vi roberta gambá abraçada com a almofada (que depois eu soube que foi incinerada) e a cara de quem não estava entendendo nada de mel.
sem saber o que fazer, decidi fingir um ataque de tosse e corri para o banheiro. lavei as mãos, o rosto, o cotovelo, o pescoço e quando não tinha mais o que lavar, saí do banheiro.
quando cheguei na sala, todo mundo estava dormindo. menos roberta gambá, que continuava abraçando a coitada da almofada.
sentei ao lado dela, segurei a ânsia e dei um sorriso. ela olhou pra mim, também sorriu e me beijou.
pensei:
– bem, já que está todo mundo dormindo, ninguém precisa saber de nada.
passei a respirar apenas pela boca e encarei.
depois de um tempo ela disse que tinha que ir pra casa. fui com ela e depois de dar uns amassos no elevador (bons tempos quando os elevadores não tinha câmera, hein?) a deixei na porta de casa.
até hoje, quando passa um filme de terror na TV, me lembro daquele dia. afinal de contas, minha melhor camisa foi pro lixo naquela sexta-feira 13.
o botequim
à tarde, como de praxe, o botequim encontrava-se vazio.
alaôr, seu ala para os íntimos, proprietário, garçom, caixa, cozinheiro e confidente estava olhando para a TV, tentando captar alguma coisa entre os chuviscos da 14 polegadas.
quando os três ponteiros do relógio de parede estavam todos no 3 – o dos segundos, quebrado, nunca saia de lá – eles entraram.
inimigos mortais, não se falavam desde a infância. maior que o ódio que sentiam um pelo outro, apenas a curiosidade que o encontro diário para um café causava nos funcionários do botequim, seu ala e a TV.
a tensão pairava no ambiente, junto com o escape dos ônibus que saiam de cinco em cinco minutos do terminal logo em frente.
o bule, com duas xícaras, já os esperava no local de sempre.
sentavam-se ali todas as tardes e ficavam horas em silêncio. um servia café ao outro, mesmo correndo perigo. desconfiavam de uma dose fatal de veneno.
seu ala desconfiava de uma futura úlcera, devido ao café.
quando o bule secava, eles levantavam, pagavam e saiam lado a lado, com medo de uma punhalada pelas costas. e assim eles seguiam a rotina, regando o ódio com cafeína.
até que um dia, ao darem o primeiro gole no café, se entreolharam com ódio e surpresa nos olhos, caindo no chão do botequim logo em seguida.
mortos.
no enterro só estavam presentes seu ala, o coveiro e o bule, que fora colocado em cima dos caixões, em uma homenagem irônica.
uma semana depois, na tranqüilidade de uma tarde sem tensões, mas ainda com a fumaça dos escapes, seu ala decide tomar uma cafezinho.
seu último pensamento antes de cair morto no chão do botequim foi:
– como eu pude esquecer de lavar as xícaras?!
molho de chaves
ela estava no elevador descendo apressada para uma reunião com sua nova chefe, uma versão feminina de hannibal lecter.
jogando seu molho de chaves para cima, num ritmo constante e absolutamente irritante, ela ia imaginando o que estaria acontecendo nos andares que iam pipocando no visor do elevador.
aquela mania que “o falecido”, seu ex namorado, carinhosamente apelidou de tique – que me deixa – nervoso era a única coisa, fora o seu mamel light, que ela não conseguia se livrar.
na verdade, ela passou a apreciar ainda mais esse tique depois que descobriu o ódio que o falecido tinha dele.
e assim ela ia, de andar em andar, irritando até o compositor da bossa-nova-água-com-adoçante que tocava no alto falante estourado da relíquia que levava as pessoas para cima e para baixo.
até que ele parou no 9º andar.
automaticamente ela aumentou a velocidade do tique – que deixa o falecido – nervoso, sinal que os conhecidos entendiam como um alto e sonoro “CORRAM PARA AS MONTANHAS!”, pensando no seu atraso e sentindo os olhares fulminantes que hannibal de saias soltava para sua mesa, ainda vazia.
foi quando ele entrou no elevador.
baixo, quase careca, quase gordo, quase cinquentão. um autêntico representante da espécie “quase”. tudo bem, ela também não era nenhuma stephany, a do crossfox, mas não aceitava sequer ser vista em companhia de um dos “quase”.
ela murmurou um boa-tarde em resposta ao seu animado bom-dia e continuou com o tique que certamente mataria o falecido em mais alguns anos de convivência.
o elevador continuava descendo, sem nenhuma pressa, quando ela derrubou o molho de chaves. enquanto pensava no alívio que era não escutar mais aquele som, o quase baixava para apanhar o molho e devolvê-lo, quando bateu a testa quase careca no nariz dela.
pedindo desculpas sem sequer parar para respirar, o que era pior que a dor, pensava ela, o quase estava mortificado.
ela levantou-se bruscamente, olhando com raiva para o quase, que deu um sorrisinho amarelo e, para desespero dela, desculpou-se mais uma vez.
quando ela se preparava para soterra-lo com todo a cultura verbal que uma infância com seis irmãos oferece, veio o espirro. tão de repente que ela não conseguiu sequer colocar a mão na frente.
ao abrir os olhos, ela deparou-se com ele sorrindo com um lenço na mão e dizendo “saúde”.
até hoje contam essa história aos netos, ambos omitindo, num acordo silencioso, que ele jogou o molho de chaves no fosso do elevador enquanto ela assoava o nariz.
dois anos é muito tempo
dois anos é muito tempo.
quer dizer, isso depende do contexto.
para pais de primeira viagem deve ser bem pouco. até porque nesses dois anos a coisinha-linda-de-mamãe aprende a falar, andar, morder e sujar.
mas para outros, é muito tempo.
imagine só passar 730 dias tomando conta da jabuticabeira mais antiga doacre. não dá, né?
claro que existem outras coisas pra se fazer em 2 anos.
aprender uma língua, achar todos os segredos de metal gear solid 4 ou descobrir porque o pão sempre cai com a manteiga pra baixo.
mas eu sempre tive a impressão que são as coisas mais legais que fazem o tempo passar mais rápido.
deve ser por isso que desde 2007 ele tá andando num ritmo extraterreno.as vezes até parece que meu relógio tomou red bull.
o engraçado é que eu nunca imaginei que ia gostar que o tempo passasse tão rápido. afinal de contas, quem gosta de ficar mais velho (favor ver o post anterior)?
mas aqui estou eu, achando lindo o fato de o tempo passar ultra-mega-rápido.
tão rápido que dá um frio na barriga.
um frio que eu espero sentir pra sempre.
crescer é bom. pros outros
ser adulto não é legal.
pronto. falei.
me digam, qual é a grande vantagem de envelhecer?
o incessante acúmulo de responsabilidades?
porque convenhamos, ser criança é muito mais legal. a única preocupação existente é passar de ano. e tentar pegar na mão da maricota do 203.
eu fazia as promessas mais mirabolantes pra ver aquele 7 azul no boletim no final do ano.
desde parar de falar palavrão até estudar de verdade no ano seguinte.
obviamente eu não cumpria nenhuma delas.
mas eu lembro que prometia com um fervor impressionante.
mals aí, criador.
mas melhor que a infância é a adolescência.
você ainda pode se divertir como criança, mas tem regalias de adolescente, como dormir tarde e apalpar todos os centímetros das colegas adolescentes. mesmo que no final das contas o único lugar com livre acesso fosse o cotovelo.
de repente chega o vestibular.
pressão de todos os lados.
da professora psicótica que deposita as esperanças da sala em você (“você vai passar, tenho certeza. você é especial!”) até os pais, que não fazem nenhuma pressão declarada, mas também estão perdendo o controle do esfíncter, igualzinho a você.
passado o vestibular, as coisas tendem a acalmar-se um pouco.
Claro que dependendo do número de vezes que ele foi tentado, a pressão posterior pode ser multiplicada algumas vezes. umas trinta. besteirinha.
quando se entra na faculdade ainda existe aquela ilusão de que você voltou a ser despreocupado. mais ou menos como a criança lá de cima.
HÁ!
depois de um ano de zoeira, chega sua tia-avó de cuz das almas e manda aquela pergunta marota na frente de toda a família:
– um ano na faculdade e você ainda não tá estagiando, mizifio?
é, amigo. pressão.
daí pra frente é ladeira abaixo.
estágio. trabalhos da faculdade. estágio. monografia. estágio. contratação (ou não).
trabalho. trabalho. trabalho.
daí, quando você tá começando a ganhar uma grana legal e voltando a ser pelo menos um adolescente – aliás, melhor, já área acessível das meninas cresceu consideravelmente – chega o pai da sua princesa e fala:
– E então, rrrrrrapaz. não vai casar não?
é, amigo.
pressão.
politicamente chato
os chatos do “politicamente correto” e do “moralmente aceitável” acabaram com a graça da vida.
ou você não acha que tudo era muito mais divertido quando dizer que português é burro não era sinal de uma sociopatia iminente?
crianças não podem mais brincar de luta com seus bonequinhos dos comandos em ação porque isso estimula a violência. saudável é ficar assistindo pokemon, chatomon e bizarromon.
jogos de computador são proibidos por terem um conteúdo excessivamente violento.
na boa, alguma criança mentalmente saudável consegue se divertir jogando ursinho pooh na floresta encantada e seus amigos, os bichinhos fofinhos?
experimenta fazer uma piada dizendo que os gaúchos têm uma opção sexual diferenciada ou que os baianos são preguiçosos. sempre tem um militante do politicamente correto dizendo que a gente está sendo intolerante, que isso não se faz, e que “eu vou contar pra sua mãe”.
nem as rodinhas de bar se salvam.
se alguém for contar uma piada que ofenda a nova ordem mundial, é capaz de o garçom nem servir mais à mesa.
margaret thatcher que me perdoe, mas minhas piadas de padres pedófilos, portugueses com um intelecto inferior (isso significa “burros”, ó pá) e judeus pirangueiros vão continuar firmes e fortes.
e quem achar ruim que vá ler paulo coelho.
pebas, não. não mesmo
nunca fui fã de poesia.
pra ser sincero, sempre achei um saco.
principalmente quando pegava um verso pra lá de confuso e perguntava a um fã do babado que diabos aquilo significava e ouvia de volta, normalmente com um ar misterioso:
“ah, isso depende da interpretação de cada um.”
como assim?!
quer dizer que fulaninho de tal escreve o que quer e nem precisa fazer sentido? isso é que é profissão, pensava eu com meus botões.
botões não. zíperes, que eu sou modernoso.
outra coisa que eu nunca gostei e até tinha medo, antes de chegar na idade de conseguir espantar alguém com olhares ameaçadores: cantadores.
na boa, ter que ficar ouvindo dois caras fazendo piada com você e no final ainda ter que pagar com medo de ser mais achincalhado?
non, non, non. é demais pra mim.
por isso tudo nunca imaginei que algum dia eu aplaudiria de pé, e com vontade, a junção dessas duas…er…formas de arte.
no dia 22 de outubro eu fui para o lançamento do CD A Revolução dos Pebas, da banda Fim de Feira no teatro da universidade federal de pernambuco.
como amigo dos integrantes, sempre fui aos shows e acompanhei a evolução do grupo. mas, sinceramente, nunca fui fã.
então, ao chegar no show, me preparei para duas horas de “lamento sertanejo”.
odeio estar enganado.
a cortina subiu e meu queixo caiu.
fiquei espantado em de repente me dar conta que o trio pé de serra com a zabumba hardcore de bruno se transformou em um grupo musical pra lá de sensacional.
acompanhei as músicas com uma avidez impressionante. até parecia que eles eram britânicos.
até os versos de bruno, que eu já cansei de ouvir e até memorizei, mas não sem antes lutar muito contra, fizeram os pêlos do meu braço lutarem contra a força da gravidade.
quando André começou a cantar, senti uma coisa que só achava que sentiria quando meu filho chegasse na mesa final do WSOP: orgulho.
daí pra frente foi só ascensão, com convidados especiais e música nordestina tipo exportação.
o apogeu chegou e com ele veio uma batalha de pandeiros.
a platéia estava alucinada, não tanto quando tonzinho, que parecia duelar com as cordas dos seus instrumentos e, para delírio dos presentes, sempre sair ganhando.
de repente, graças ao declamador, um cheiro de bolo que eu não sentia há muito tempo invadiu as minhas narinas. e ele só aumentou quando seu florismundo levantou-se para saudar seus netos.
contrariando as regras conhecidas, a queda não veio. o que veio foi uma chuva de aplausos. e merecidos.
ao contrário de quando eu cheguei, saí de lá estranho. continuava sem gostar de poesias e cantadores ainda tinham lugar cativo na minha câmara de torturas.
mas não pude deixar de sentir uma sensação conhecida, como se eu novamente tivesse comido um daqueles bolos, depois de torcer um bocado para ele dar errado.
cheiro de avó
e cá estou eu.
pensando um monte de coisas quando deveria estar pensando em um título pro anúncio de carros usados de um cliente.
entre essas coisas eu lembrei da minha avó.
vovó dezinha.
é, ela era tão fofinha quanto o nome.
e sim, ela já morreu.
eu a amava do fundo do coração. afinal de contas, ela era daquelas avós que todo mundo amava. até os netos das outras avós.
eu tenho uma visão muito particular da dona morte.
inevitável.
igual a lamber a tampa de alumínio do iogurte.
e acho que foi por isso que eu, por mais incrível que possa parecer, não fiquei triste quando ela morreu.
chorei, é claro.
mas chorei de saudade. e não de tristeza, porque eu sabia que ela era feliz. bastava olhar naqueles olhinhos pequenos para ver que ela era muito feliz.
sabe aquela pessoa que você olha e muda seu humor?
ela era assim.
e não era aquela felicidade que se sente quando o time ganha do rival, ou quando se acha uma nota de 50 no bolso da calça.
era felicidade de ter vivido. e bem.
e é por isso que eu não fiquei triste quando ela cansou daqui e partiu.
zpesar de às vezes ainda chorar de saudade.
principalmente quando eu lembro do abraço e do beijo na cabeça.
ou da risada aguda e contagiante.
quem sabe é por causa dos carinhos no meu cabelo quando eu deitava no colo dela?
mas nada se compara a lembrança do cheiro dela.
vheiro de vó.
da minha vovó dezinha.
carona com chimbinha e dona ivone lara
cena:
ônibus lotado, sete e meia da noite, som ambiente da banda calypso (vai chimbinha, vai!).
de repente, o motorista mete o pé no freio. com aquela vontade que só algumas pessoas têm.
lá estou eu, tentando me equilibrar quando olho para o lado e vejo dona ivone lara vindo pra cima de mim.
olho para os lados na esperança de achar uma saída. mas não tinha nenhuma.
ou dona ivone em cima de mim, ou a cabeça no chão do coletivo.
respirei fundo e pensei: “meu playstation para andré, minha maleta de poker para léo, minhas dívidas para meu chefe.”
abri as pernas para ter mais equilíbrio e segurei com força para tentar resistir ao impacto.
pobre de mim.
dona ivone veio desgovernada, atropelando tudo pelo meio do caminho. mais ou menos como aquele ônibus pilotado por sandra bullock.
impacto. dor. oxigênio expelido abruptamento dos pulmões.
abro os olhos e a primeira coisa que eu vejo é um sovaco suado no meu rosto.
dona ivone me derrubou e ainda ficou por cima. além de tudo nem pude exercer meu papel de macho alfa.
ela levanta. ou melhor, é levantada.
eu tento me erguer, mas a visão do sovaco está viva demais na minha cabeça. e nas minhas narinas.
consigo ficar de pé. tudo dói. principalmente as narinas.
a guitarra maldita de chimbinha continua gemendo. igual a mim.
o motorista se vira e fala: “desculpa aí galera!”
o ônibus segue, assim como a guitarra e o cheiro inesquecível do sovaco de dona ivone lara.
o prazer do vazio
folhas em branco causam sempre o mesmo efeito em mim.
aquele velho e familiar sentimento de infinitas possibilidades. como se fosse a chance de começar algo do zero, um recomeço.
em sua frente não tenho passado, não tenho futuro.
tudo que tenho é aquele momento. aquela chance de criar.
criar personagens, criar histórias, contar mentiras, contar verdades.
com ela ao meu lado posso trocar uma idéia com raskolnikov, posso paquerar com, ai ai, audrey hepburn, posso fazer um dueto com johnny cash.
na sua imensidão pálida dou um mergulho no parque de diversões que costuma ser minha cabeça.
posso colocar pra fora os meus sentimentos, angústias.
posso ser criativo. posso ser brega.
você deve estar pensando:
– mas que exagero. não passa de uma folha em branco!
então pergunto: quem nunca teve vontade de ter outra chance?
na frente da minha amiga vazia sou quem quiser ser.
e não precisa ser uma folha especial, não. pode ser uma dessas comuns, do word mesmo.
afinal de contas, nada se compara com a oportunidade de um restart.
sou mesmo um privilegiado por toda manhã ter um encontro com uma folha em branco.
sexta-feira
eu acho engraçada a revolução que a sexta-feira causa na vida das pessoas.
sério mesmo.
ss sextas-feiras são repletas de perguntas como:
– e aí, qual é a boa de hoje?
e se você ousar responder que não vai fazer nada corre o risco de ser olhado de uma maneira estranha, como se de repente seu rosto se transformasse no de dercy gonçalves.
com hanseníase.
sem falar que ninguém trabalha na sexta-feira.
nem os chefes.
aliás, muito menos os chefes.
a única coisa que acontece nas sextas-feiras são as conversas:
– hoje eu vou na boate, pegar arnega (playboyzês para “as negas”).
ou então:
– amiiiiiiiga. tudo certo pra hoje, né? vai ter felipão & forró moral na boate. a gente se encontra lá. beijo, miga.
argh.
eu fico nervoso nas sextas-feiras.
essa pressão social pra fazer alguma coisa me tira do sério.
numa sexta-feira dessas, justo quanto eu tinha prometido que ia arrancar o fígado pelo sovaco do próximo que me perguntasse o que eu ia fazer, um dos meus chefes entrou na sala e começou a discursar sobre como ele adora a sexta-feira, como ele passa a semana toda esperando por ela, o pacote completo. parecia até que ia ressuscitar
ele passou, no mínimo, meia hora puxando o saco desse maldito dia.
eu estava suando.
minha cadeira estava parecendo uma daquelas bóias de parque aquático. aquelas que quando você se mexe faz um barulho agradável, sabe?
de repente ele virou pra mim e fez:
– e aí, paulo? hoje você vai…
o sangue subiu.
a veia na minha testa parecia o grand canyon e eu não me controlei. levantei da cadeira, pronto para falar alguma coisa que com certeza resultaria na minha demissão por justa causa assim que ele completasse a pergunta.
ainda bem que ele falou:
– … sair na hora, né? pra compensar que você ficou até tarde ontem.
ufa.
odeio sextas-feiras.